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Nina Horta

Perfil Nina Horta é empresária, escritora e colunista de gastronomia da Folha

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Tradição recente

Por folha
29/10/14 02:00

Peguei um livrinho míni, mas inteligente e conciso, de uma editora que eu não conhecia. Chama-se “Pasta e Pizza”, de Franco la Cecla, da Prickly Paradigm Press.

O autor conta que não se comia macarrão na Itália até 1860! Pelo menos não era a comida típica italiana. Só depois que o Estado se unificou é que se foram construindo pontos de referência comuns dentro do mosaico fragmentado que era a Itália.

Uma prova que quase não se comia macarrão vem dos apelidos das gentes das várias regiões. Mangia rapi, mazzamarroni, mangia fagioli, pane unto, cacafagioli, cacafoglie ou mangiafoglie. No século 16 só os sicilianos mereciam o epíteto de mangia maccheroni.

Não foi o patrimônio artístico da Itália que conseguiu moldar o perfil do italiano. Foram a mamma, as conversas na calçada, a domesticidade, os grandes gestos ao falar, essa aparente trivialidade, mais fácil de ser observada e assimilada que marcou no mundo a “italianice”. O restante era muito complexo.

Para fazer essa recomposição do perfil italiano ou para inventá-lo, um bom começo era a comida. O “ser italiano” poderia ser reconhecido por meio de uma comida única ou mais característica.

Foi um marketing e tanto. Se em 1860 o macarrão era pouco comido na Itália, algumas décadas depois tornou-se o logo e a bandeira para que se reconhecesse mundo afora a italianice. (A pizza também sofreu o mesmo processo.)

Outros autores estudaram as cozinhas nacionais e confirmam que elas não existem na realidade. Um povo precisa dessa cozinha só em momentos de crise, de mudança políticas. Uma autora famosa afirma que uma cozinha nacional ajuda a traçar os limites de uma identidade política e, para criá-la, é comum que compactem, sintetizem cozinhas regionais e locais e formem um estereótipo juntando cacos daqui e dali. Na Itália, o livro que efetuou o milagre foi de Pellegrino Artusi. “La scienza in cucina e l’arte di mangiar bene” (a ciência da cozinha e a arte de comer bem), de 1891.

Com a imigração italiana para os Estados Unidos, a Itália viu um reforço para uma cozinha nacional. Aproveitou-se também de uma onda de comida saudável, mediterrânea. Ugo Tognazzi descreve o processo de adaptação da comida italiana a um outro país quando teve que fazer um gigantesco espaguete à carbonara para 50 convidados no hotel Hilton de Nova York para o lançamento de um filme seu.

Pensou. Todo mundo é americano. O que poderia agradá-los? Descartou o “spaghetti al pomodoro e basilico” porque poderiam confundir com pizza. Deixou de lado o “alla matriciana” com medo da qualidade do tomate americano. Por eliminação chegou ao “alla carbonara”. Onde encontrar coisa mais americana do que ovos e bacon?

E juntaria um pouco de creme de leite, pois os americanos põem creme de leite em tudo. E uma bebidinha também, que não faz mal a ninguém. Ora, o que é o macarrão senão trigo processado? E os americanos adoram seus sanduíches. Os italianos acham que as massas são milagres de Deus para um povo sofrido. Mas o macarrão não é somente pão feito de outro jeito?

Quem se interessar leia esse livrinho simpático, pois aqui não cabem duas páginas dele. E nos dá bastante pano para pensar.

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Menu de noiva vegetariana

Por Nina Horta
23/10/14 20:25

Menu de casamento.

A noiva mora na India, é vegetariana e muito brasileira. Vai casar em fazenda próxima a São Paulo, em um jantar. As conversas estão sendo com a mãe, quando ela chegar talvez tudo mude.
• Mônica, conversamos pouco. Lembro de ouvir você dizer que que seria uma coisa leve. Mas, como? As pessoas não almoçam antes de um casamento, quando muito um sanduíche, não dá tempo, cabelos para arrumar, pegar vestido, isso e mais aquilo. E quando chegam ao casamento estão simplesmente mortas de fome.

• São 400 pessoas e tudo deve ser feito para que esse grande número de pessoas seja bem servido. Uma das fórmulas é comida o bastante mas sem excesso de variedades, o que aumenta muito o número de cozinheiros e de garçons.

• Uma fórmula que tenho usado muito é a de ter a mesa já pronta depois da cerimônia. Mesas principais, lindas, bem postas. Quem quiser já vai se aproximando, pegando um prato e montando o seu coquetel, as suas entradas, seu prato principal.

• Pensei em ter como carne, já que temos gente importante vegetariana, (a noiva) as coisas “menos carne” que existem. Seria um enorme peru, muito bem fatiado com farofa, castanhas portuguesas e que pode ser comido com o molho quente ou todo frio.

• E o peixe, que será frio mesmo.

• Para 400 pessoas não dá para se servir um coquetel comprido e perfeito com coisinhas mínimas arrumadas na hora.Teríamos as coisinhas fritas e de forno:- pastéis de palmito, samosas, bolinhos, umas frescurinhas quaisquer, uma panelinha com um purezinho de inhame e pequenos camarões saborosos, sete barbas.Mas enquanto as pessoas estão se servindo nas mesas, não depois. A festa toda se resolve ao mesmo tempo.

• Nas mesas
• No centro das mesas dois imensos tachos : um com arroz basmati, branquinho, todo espetado de alhos negros cortados ao meio. O outro com arroz negro cozido no leite de coco e água enfeitado com lascas de coco. (Os arrozes bem altos, em pirâmide, significando fartura, fertilidade.)

• Espalhados pelas mesas, próximos ao arroz, comidinhas que acompanham bem o arroz como:
• Abóboras bonitas, bem formadas, assadas, recheadas com dois queijos . São abertas na hora e cortadas em fatias, com casca e tudo.
• Vasilhas coloridas com chutneys feitos em casa, bem saborosos:
• de tomate
• coco
grão de bico, coentro.

• Carnes:Dos dois lados do arroz
• Um gravlax cortado bem fino, montado, saboroso. (não precisa ser salmão, qualquer peixe) Frio
• Belíssimos perus, grandes, remontados, frios e com o molho quente.
• Se a noiva preferir um curry de peito de frango com mangas, para ser comido com aqueles arrozes retirem o peru. E melhor ainda e as pessoas adoram, um curry só de castanhas portuguesas para comer com arroz e com mangas.
•
• Nas duas extremidades da mesa, saladas bem coloridas, em vidros:
• Radicchio roxo cortado bem fino com queijo de cabra e nozes
• Alface macia com avelãs e caqui duro
• Mini batatas com casca, com ovos de codorna de gema mole e um pouquinho de pesto
• Tomatinhos de todas as cores cortados ao meio com croûtons e sal defumado
• Quinoa com fatias grandes de abacate polvilhados com pistache bem fresco.
•
• Pãezinhos que vão prontos de SP para serem assados lá, meia hora antes.
• Sobremesa –
• Mesa bem farta e colocada em lugar estratégico para ser bem vista, de docinhos de casamento
• Lindos arranjos de frutas, já arrumados de jeito que possam ser comidos. (Mangas muito doces, em fatias, maracujás doces sem o tampo com colherinhas, tudo bem brasileiro.)
• ( Acho que a mesa de doces é muito querida tanto por brasileiros como por estrangeiros. E não existe fora do Brasil.)
• Na pista de dança qualquer carrinho bonito de sorvetes de frutas brasileiras e chicabom.
• Café perto dos doces.
•
• Monica, escolhi esse toque oriental, não por causa da India, mas porque a melhor comida vegetariana é indiana.
• Se ela não quiser nem pensar, continuamos com o arroz, com os chutneys e fazemos comida brasileira que está tão na moda, no lugar das carnes. Bem, o peru é muito brasileiro e outra coisa que as pessoas gostam bastante é um bacalhau desfiado com ovos mexidos, alcaparras e batatinha palha.

• Não fique encafifada que comida brasileira é pesada. Não é. Mesma coisa. Se ela quiser pode ter alguma coisa de milho, uma quirera, ou um bom bobó. Daí se muda aquela entradinha de camarão. Se ela precisar de mim para pensar em menu terei o maior prazer, em ajudar.

Eu não sabia que eram 400 pessoas. Fazendo um menu, assim mais enxuto, acredito que você não vai ter muito aumento de preço. Só o frete e talvez três pessoas dormindo lá antes da festa.

Ciao, um beijão. Nina

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Tchau, ingenuidade

Por folha
22/10/14 02:00

Um prato de comida é um prato de comida, um prato de comida? Ingênuo, cheiroso, gostoso? Nada disso, na verdade nunca foi. Por trás de uma mandioca frita há mais política do que nos últimos dias da campanha eleitoral.

Comer e cozinhar é um jeito de se ligar. Ligar ao chão, à planta que cresce, aos bichos, ao prazer, ao maduro, ao verde, às lembranças, às histórias contadas, ao livro de receitas desbeiçado que foi da avó, à viagem que deu papo para uma vida.

Atualmente, por causas variadas, não é mais possível enfrentar o frango assado, castanho, brilhante acompanhado de batatas fritas e a farofa chiando ao lado somente com a perspectiva de satisfazer a fome. A galinha reclama explicações, parece um filho adolescente, quer saber quem é, de onde vem para onde vai. Antigamente, a canja da mãe judia curava as náuseas existenciais. Hoje, a galinha é que é infeliz e que tem que ser tratada solta com milho do amarelinho. É a ansiedade pura, quer seus documentos de identidade.

A comida chega ao prato sacudida, extenuada, anunciada, tabelada, exposta no mercado, comentada nos reality shows, diva dos jornais, das revistas, dos livros, mais glamorizada que a Bündchen. Filmes, literatura, todos falam da galinha no nosso prato, virou um gênero literário… De repente todos querem entender de comida –aliás, pelo jeito, só pensam nela.

Percebemos por causas variadas que a comida não é só boa de comer, mas serve também para pensar. O que nos deixa tontos nos supermercados e o que antes era só uma tarefa doméstica virou uma lição de casa a ser estudada com lupa nos pacotes que compramos.

Onde jogar o plástico da embalagem, que ideia foi essa de inventar a embalagem, a geladeira, a luz fortíssima? Por que não nos satisfizemos com a vaca, a caneca, a casinha no terreiro varrido? Quem teve a ideia das grandes cidades, dos engarrafamentos, dos shoppings, dos condomínios fechados, dos carros blindados? Meu Deus, fizemos tudo errado, como foi que alguém mais sabido não percebeu que estávamos comendo o mundo às dentadas?

Foi-se embora o frango ingênuo. Hoje, ele atravessa nosso bolso, expõe riqueza, pobreza, fome e fartura. Carrega em si o fim do mundo, o apocalipse, a utopia, a esperança num mundo justo. E nós, simples mortais urbanos, vamos fazer o quê? Começar por onde? Como resolver a vida da galinha? E a nossa? Tudo que nos passa pela cabeça é mínimo, é pequeno, é um grão de areia. E se o calorão chegar? E se a comida acabar? E se a crise piorar?

Alguns acham que é preciso começar em casa, mas a maioria das pessoas educadas sempre fez o que é óbvio. Economizou água, plantou seus temperinhos, não deixou derrubar árvores, evitou o desperdício, teve espírito de comunidade, quais são os próximos passos?

Por hoje eu sei. Sentar à mesa com as mãos lavadas, colocar os pratos que você tem e com os quais está acostumada. A jarra pequena com água de coco gelada, a galinha feliz, mas, assada em casa, um vasinho kitsch de flor. Depois disso, comer o frango e a farofa e de barriga cheia, aí, sim, vai ser muito mais fácil pensar com esperança num mundo que sobreviva conosco.

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Novo livro do Ottolenghi.

Por Nina Horta
17/10/14 15:39

Vocês têm os livros do Ottolenghi? Ganhei o primeiro de uma amiga e foi um presentão. A filha dela estudava na Inglaterra e adorava o restaurante dele. O primeiro livro, Plenty, foi uma revelação para mim, muito criativo e com comida gostosa. Fiz bastante coisa de lá, deu tudo certo. Algumas coisas nem tanto porque dependiam sobremaneira dos ingredientes. E a abóbora estava meio sem gosto, não dá para provar crua, estas coisas que o cozinheiro tem que ver antes. E o Otolenghi não vive sem berinjela, e eu também.
Enfim, ele vem prometendo esse ”Plenty. More,    Vegetable Cooking from London´s Ottolenghi”, há um tempão. Veio para comemorar a nova moda dos legumes. No primeiro Plenty nem percebi que ele era vegetariano pois havia carnes, poucas. Agora perdeu a vergonha.

Os capítulos sãodivididos os modos de cocção:
Refogados/ No vapor/Branqueados/Grelhados/Assados/Fritos/Em purê……… e vai por aí.
Na introdução ele já nos dá água na boca ao comentar a renascença dos legumes e das verduras. Deliciosas azeitonas gordas em azeite de oliva; uma marinada de molho de soja e pimenta; grão de bico amassado com ervilhas/páprica defumada num dip potente/ quinoa, cevada, Sorvete de tahini e de halvah/ sobremesas salgadas/saladas vietnamitas/ dips libaneses/ iogurte grosso sobre berinjelas defumadas.

Demorou um tempão para inventar tantas novidades. Se achava o maior dos medrosos, aliás era o maior medroso, tinha até mesmo medo de ficar sozinho e foi convidado para escrever a coluna vegetariana do jornal inglês, The Guardian. Quase morreu de angústia. Primeiro os legumes ainda não haviam entrado tanto na moda e ele tinha medo que os clientes pensassem que ele não sabia fazer carne. Mas, pulou no escuro. E à medida que o tempo passava a comida vegetariana foi mudando de feição e passou a ser não mera coadjuvante, mas muitas vezes o prato principal.
Foi a sorte dele. Cozinheiros no mundo inteiro começaram a descobrir novas ideias vegetarianas vindas do Japão, do Norte da África e da Itália… (inclusive massas)

Cada receita tem sua foto. A estética dele é meio bagunçada, mistura a salada toda, mas é aquela cara moderna, coisa gostosa de comer e pronto.
Vou dar uma receita dele, enorme, mas é uma adaptação da nossa antiga maionese de domingo, facílima, não se impressionem. Comprei na Amazon, pelo Kindle, e não estou sugerindo que comprem, com certeza logo vai aparecer traduzido por aqui. É que foi lançado ontem, e é interessante saber das novidades…

Salada “Tipo Waldorf”

Serve de 6 a 8 pessoas
Estou pesquisando o que é “cobnut”, não achei no dicionário. Em todo caso ele acha que amêndoas ou avelãs podem substituir a tal de cobnut. Quem souber, me avise, procurei num dicionário mequetrefe para essas coisas que é o Google.
1/3 de xícara de avelãs ou amêndoas
¼ de cabeça de repolho roxo finamente cortado em tiras
(300 g)
6 hastes de salsão ou 3 ½ xícaras cortadas fininhas( 5 mm)
2 maçãs Granny Smith, sem sementes e cortadas (2 ¾ de xícara)
½ cebola roxa cortada finamente (½ xicara)
2/3 de xícara de creme azedo
1 xícara de dill finamente picado
¾ de xícara de cerejas amargas ou cranberries, opcional
Sal e pimenta- do- reino
Maionese
1 pequena chalota, finamente picada( 2 colheres de sopa)
1 gema de ovo
1 colher de chá de mostarda de Dijon
1 colher de chá de xarope de maple ou bordo
1 colher de sopa de vinagre de sidra
1/3 de xícara de óleo de girassol
1/3 de xícara de óleo canola
Sal

Preaqueça o forno a 160 º
Espalhe as frutas secas numa forma que vá ao forno e deixe por uns 30 minutos, até que tomem cor e fiquem sequinha e crocantes. Deixe que esfriem e pique grosseiramente.
Para fazer a maionese, coloque a chalota, a gema do ovo, a mostarda , o xarope de maple, o vinagre e ½ colher de chá de sal num pequeno processador. Bata tudo e vá juntando os óleos num fio contínuo, com a máquina funcionando, até conseguir uma maionese lisa e grossa. Separe.
Coloque o repolho, o salsão, as maçãs e a cebola numa tigela. Junte o creme azedo,o dill, a maionese, a fruta vermelha, ½ colher de chá de sal e uma pitada de pimenta-do- reino moída. Mexa tudo com as mãos e não se incomode se a maçã quebrar. Faz parte. Transfira para pratos individuais, polvilhe as nozes por cima e sirva.

É um livro agradável. Mas nada de bom demais,daqueles que não dá para não ter.Princip Normal.

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Uma cozinha pela manhã

Por folha
15/10/14 02:00

A cozinha logo de manhã é um pouco fantasmagórica –como um set de cinema abandonado, comparando-se com a atividade que vai brotar dela um pouco mais tarde. Foi lindamente planejada como uma cozinha do Soho, de Nova York.Era uma maltratada oficina de carros, e reformamos com canos aparentes, azuis para a água, vermelhos para a fiação. Toda a parte de eletricidade para ligar as máquinas corria em trilhos do teto para que liquidificadores e batedeiras pudessem andar de cá para lá, à vontade. Os cozinheiros inexplicavelmente detestaram esse arranjo e gostavam de lugares fixos para os aparelhos.

Assim, de manhãzinha, não há barulho, a não ser das duas câmaras frias. São boas as câmaras, grandes, confortáveis. Em dias muito quentes o sonho é ficar lá dentro o resto da vida. Nada de cheiros invasivos. Uma torneira que pinga, é preciso ver o que é.

As caixas de encomendas do dia já começaram a chegar e estão em fila no corredor externo. Muita berinjela, uns plásticos transparentes com flores mínimas de legumes, e flores comestíveis para enfeitar, ainda molhadas de orvalho, colhidas naquela manhã. É melhor levar para dentro, colocar sobre a mesa aparador, junto aos telefones e computadores, e ver o que veio, se está tudo nos conformes.

Ah, conseguiram sementes de papoula, que estavam difíceis, parece que pararam de importar por um tempo. É preciso provar as pecans que tem o mau costume de ficar rançosas muito depressa. O damasco é do azedinho, dá mais gosto. Vieram os vidros de xaropes de romã e de tamarindo.

O lugar é pequeno mas traz um conforto de escritório, tão perto da cozinha. A janela grande, de vidro, nos deixa ver a Cetesb muito verde –imaginem que há faisões na grama da Cetesb.

A escada para o andar de cima é daquelas retas, íngremes. O bufê faz parte de um quarteirão de casas antigas, com moradia na parte de cima e comércio na de baixo. Era uma ideia genial, devia facilitar a vida.

Bom, há que se devolver os pistaches, não há forno que lhes devolva a crocância, e o queijo da Canastra está uma delicia.

Os enormes cadernos pretos ficam lá em cima. É o lugar onde anotamos absolutamente tudo. Tal pessoa veio pagar, a outra telefonou, há alguém querendo uma receita, os convites chegaram. É um bom modo para que todos saibam o que aconteceu.

Essa primeira hora na cozinha, de café coado e pão quente da padaria, são de uma calma quase obrigatória, pois antecedem o trabalho enorme e exaustivo que virá logo depois, sem hora marcada para terminar. É a bonança antes da tempestade. As pessoas vão chegando, buscando o uniforme e os sapatos, a roupa que os transforma em cozinheiros e é confortável como uma segunda pele.

O telefone toca, alguém começa a digitar um cardápio. O chef desce para fumar o primeiro ou último cigarro lá fora, vai-se ajeitando a orquestra de panelas e facas e colheres e cheiros e barulhos e sussurros, o gravlax sendo lavado e as batatas descascando, alumínio contra alumínio, o trabalho insano e mágico, cheio de adrenalina e de paixão que é o da cozinha.

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NOBEL 2014

Por Nina Horta
10/10/14 15:12

Patrick Modiano ganhou o prêmio Nobel. Ninguém apostava nele, nem ele próprio. E muito menos as editoras. Tentei cercá-lo no Kindle e a maioria dos livros franceses está esgotada. Foi publicado aqui pela Rocco e também está esgotado. Só consegui um livro, “Dora Bruder” em inglês, pois a Amazon francesa não vende ebooks para o Brasil.

O autor é tido na imprensa como o novo Proust. Só porque anda à cata do tempo perdido. Mas, Proust acha o tempo perdido, em parágrafos enormes. Modiano, não acha, e em frases muito curtas. Parece obsessivo com a ocupação nazista na França, coisa que ele não viveu, mas que os pais viveram. (Há uma suspeita de colaboracionismo do pai.)

Em Dora Bruder ele encontra uma noticiazinha de jornal numa cópia do Paris Soir de 31 de dezembro de 1941.
“Procurada uma jovem, Dora Bruder, 15 anos de idade, 1.55 de altura, rosto oval, olhos castanhos acinzentados, agasalho cinzento, suéter marrom, saia e chapéu azul marinho, tênis marrom. Toda e qualquer informação ao senhor e senhora Bruder, Boulevard Ornano, 41, Paris.”
Pronto, está engatilhado o processo da escrita do livro. Estamos em 65 e ele começa a pesquisar a cidade à volta desse endereço, que por acaso está no mesmo bairro onde passou a infância. Vão surgindo lembranças pequenas e fugidias tal como o hotel do bairro, o brechó, o café, tudo descrito em minúcias, e nunca acha absolutamente nada a não ser pequenas coisas, rastros evanescentes.

A vida de Dora Bruder é imaginada por ele e cotejada com a sua própria vida. Não ousaria chamar de vida, mas um cotidiano absolutamente resumido e conciso.
Onde seria a escola de Dora Bruder? E ele escreve cartas aos endereços de quatro escolas próximas do bairro de Dora e da antiga casa dele. . As cartas são respondidas. Não descobriram alguém com aquele nome. O autor deixa passar mais quatro anos para procurar a data de nascimento da menina. Dão-lhe um certificado para preencher.
“ A ser preenchido por quem pede o certificado. Responda.
Nome:
Sobrenome:
Endereço:
Venho solicitar uma cópia da certidão de nascimento de
Sobrenome – Bruder, nome – Dora
Data de nascimento: 25 de fevereiro -1926
Faça um X se for o caso:
A pessoa em questão
O pai ou a mãe
O avô ou avó
O filho ou filha
O representante legal
Se representa legalmente o advogado, e uma carteira de identidade da pessoa em questão
Ninguém, a não ser os mencionados acima poderão ter acesso à certidão de nascimento. “

Como não era o caso dele, a certidão foi negada. Mandam que se dirija ao palácio da Justiça, 2 Boulevard du Palais, e pedir uma isenção especial do Superintendente, seção 3, 5º andar, sala 5012. Aberto de segunda a sexta, das 2h às 4hs. “
Não consegue mas é informado que teria que escrever ao promotor público, no departamento B, 14 Quai des Orfèvres, Paris 3

Parece mais Kafka do que Proust, não?
E assim vai, livro afora, em capítulos pequenos. Comeu menos madeleines do que Proust e a impressão que o livro dá é que é um folheto daqueles que se levam na mão ao pesquisar uma cidade como turistas. Prosa bem seca de lista telefônica. Formula uma pequena hipótese de onde teria a menina procurada estudado, e compara à sua própria escola, ali, bem perto.
“E essa precisão topográfica contrasta com o que nunca saberemos sobre suas vidas esse branco, esse muro mudo do desconhecido.” O mapa do bairro é escarafunchado, mas nada resta, só as fracas hipótese que ele formula sobre a vida de Dora Bruder e seus pais. E naturalmente sobre sua própria vida.

“Ao escrever esse livro, estou mandando sinais, como um farol que tem o poder de iluminar, mas sem esperança alguma. Mas, eu vivo na esperança.”
“Estou escrevendo essas páginas em novembro de 1996. Não para de chover. Amanhã estaremos em Dezembro, 55 anos depois da fuga de Dora Bruder. O céu escurece cedo, ainda bem. A noite apaga o cinza e a monotonia desses dias chuvosos, quando até se duvida que é dia, de verdade, e não um estágio intermediário, uma eclipse cheia de bruma que dura até o crepúsculo.
É nessa Paris que acontece o período mais claustrofóbico, mais negro desde o começo da Ocupação. Entre 8 a 14 de dezembro, em represália por duas tentativas de assassinato, os alemães ordenaram um toque de recolher a partir das 6 h da tarde para os judeus, a prisão de 700 judeus franceses no dia 12 de dezembro e a multa de um bilhão de francos para a comunidade judaica como um todo. E na manhã do mesmo dia, a morte de 70 reféns no Mont Valérien”
E assim continua o livro. São 26 capítulos, no mesmo tom. Como um Google map de Paris, onde se pode ver até o mínimo detalhe da cidade e principalmente de um bairro. Tudo de um cotidiano seco, de informação de endereços, algumas fotos sem expressão nem explicação, tiradas aqui e ali, uma vida sem grandes momentos, todas as vidas semelhantes na sua obscuridade e contra elas, tecendo seu horror, o remorso, a culpa do Holocausto e a impossibilidade de entendê-lo ou de explicá-lo.
A escrita seca, sem um floreio é que molda a vida da ocupação alemã na França. E de lá, como um brilhante escondido nessa pedra bruta do dia a dia , o terror. São as palavras sem enfeites, os nomes de ruas, as descrições de casas que não mais existem que fazem o leitor a certa altura parar e se horrorizar. Como pode ter acontecido no nosso tempo uma perseguição desse feitio? Não é possível. Incrível que suscite em nós, com tanta severidade e sem floreios a mesma angústia que sente dentro de si por alguma coisa que não viveu mas da qual guarda a cicatriz.

(Traduzido sem nenhum capricho por mim)

PS – Nem só de receitas vive um cozinheiro.

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Morangos verdes ralados

Por folha
08/10/14 02:00

Moda é moda, todo mundo gosta de estar por dentro, de imitar o que está acontecendo. Por “todo mundo” quero dizer os grandes chefs –porque as pessoas sentadas à mesa ou em frente à televisão continuam comendo feijão com arroz ou uma lasanha congelada numa boa, totalmente alheias às novidades.

O chef premiado apresenta na capa do livro um prato branco tendo no meio um retângulo fino e uma bolota ao lado. Pode ser tudo ou nada. Sem ironia, com certeza é bom.

Como foi que chegou àquela receita? São duas hipóteses. Saiu à procura do milho que seu avô cultivava e depois de muita viagem e pesquisa encontrou. Plantou na chácara que abastece seu restaurante. O mesmo com a cenoura e o tomate e o salsão. Com uma equipe dos sonhos colhe às quatro horas da manhã e, ainda orvalhados, serve à sua clientela no almoço. Tudo quase cru. Intocado, para que ela sinta o gosto que ele sentia quando criança. É um herdeiro de Alice Waters.

O segundo chef nem planta. Cata. É o destemido. Nada que cresça à sua volta lhe é estranho. Diferentemente do outro, trata o ingrediente com furor. Comprime, compacta, estraçalha, arranca, congela, desidrata, coa três vezes, raspa.

O exemplo final está sobre um prato branco forrado de musgo frito. Sobre o musgo um pequeno galho (não comestível), um pedaço de casca de árvore (não comestível), umas pedras (não comestíveis) e pó de cogumelo. Para comer, temos o musgo e o pó de cogumelo.

E há outros pratos com pétalas de rosa em picles, técnicas, processos, equipamentos, métodos. A comida é perseguida, caçada, domada, manipulada, transformada.

Fígados de bacalhau sem a membrana externa, defumados, congelados, fatiados num mandolim gelado. Escamas fritas ao lado. Outro prato pede os espinhos do junípero desidratados e em pó com os galhos do junípero fritos. São servidos em vasos de flores que enfeitam a mesa, com outras flores normais. Pegadinha.

Se tenho inveja? Morro. Não vai dar tempo de aprender o pulo do gato. Por mais que botar a comida de cabeça para baixo. O chef é o primeiro naquela lista da revista “Restaurant”. Acredito nela e nele, e creio que ele testa o conceito de comida. O que é comida? Aquilo com o que nos acostumamos? Que convencionamos? Por que não tentar mudar completamente o conceito?

Mas sinto pena que o Orkut tenha acabado, queria começar um grupo com o nome “Tenho medo de morangos verdes ralados”.

Nos pesadelos mais profundos sobre a busca da essência o que me apavora é ver o chef sair da cozinha de toque (o chapéu do cozinheiro) e, tendo eliminado o prato, que interferia com o alimento, brandir uma colher de pau com um suco verde. E que tampando meu nariz enfie o xarope com o sabor total da paisagem pela minha goela abaixo.

Não é provável. Talvez, sim, se mude para Copacabana atrás do sol e torne-se um viciado em mate e biscoitos de polvilho na praia. Muito estresse naquele gelo.

P.S.: Confesso estar encantada com as pedras no prato. Já pensaram um prato fundo preto com caldo de feijão-preto e uma pedra grande e quente bem no centro?

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Guten Appetit- a nova cozinha alemã.

Por Nina Horta
02/10/14 19:47

São muitos os livros que chegam aqui em casa, para minha alegria. Só que são tantos que é impossível lê-los todos, imediatamente. Ficam na fila, esperando. Hoje me chamou a atenção a escolha de vinhos para as receitas do livro “Guten Appetit, a nova cozinha alemã”, organizado por Sabine Hueck. A escolha foi feita por meu amigo Luiz Horta, que escreve como ninguém. E se gostou do livro, se aprovou as receitas, com certeza é bom.
Logo no começo uma mapa da Alemanha, bem primário e claro mostrando os lugares onde ficam os restaurantes citados.
A minha experiência de comidas alemã foi pequena. Grande em dias, passei bastante tempo na Alemanha mas o conhecimento das comida era parco. Estava muito encantada com a língua, conseguia me comunicar o que foi muito prazeroso. Comia salsichas, salada de batatas, costeletas defumadas, na maioria das vezes, e me impressionava com as mulheronas, fortes, altas, que provavelmente também se entupiam de batatas. Lembro que fui aprendendo aos poucos o que deveria pedir, num passeio de barco vi um homem que tomava vinho branco e distribuía pão preto para as gaivotas que se aproximavam dele sem medo.
E as canecadas de cerveja, da música, umas turista encantada por Munique e até por Frankfurt onde encalhamos por dez dias. Os alemães desconhecidos vinha à mesa na cervejaria e pediam aos maridos se podiam dançar com as mulheres. E acreditem, por Deus, eles não deixavam!!!!! Como seria bom ter descoberto aqueles alemães e dançado com eles, que machões eram nossos maridos!
Provavelmente passei os dias procurando tomar o excomungado Liebfraumilch que tanto sucesso fazia no Brasil.
É um livro que dá vontades. Desejos. Quero comer comida de rua em Berlim, que pelo que vejo tem de tudo um pouco. De churrasco de cordeiro a kimchi, e hot dogs com curry. Sem contar o späetzle alemão, visitar a feira de cozinha asiática, um pedaço de Bangkok. No meu tempo não tinha disso, não tinha mesmo.
Todas as cidades mencionadas contam com a descrição dos restaurantes que Sabine Hueck achou mais interessantes. Restaurantes bons…e diferentes. Não consigo colocar o dedo na diferença, na especificidade do que é alemão, mas sinto nos ossos, sem precisar que me digam. Há uma receita caracterizando Berlim, num prato globalizado, aqueles brancos, fundos no meio, com aba, e é uma sopa de endívia e batata com almôndega berlinense. Uhm, na verdade é um o prato típico transformado em sopa. Mas, vale, é bonito e deve ser gostoso.
O vinho que meu amigo Luiz Horta indicou para acompanhar? Nunca poderíamos pedir, pelo tamanho do nome. Vejam: Hattenheimer Hassel Beerenauslese 1999 (Hans Lang).

Salsicha branca com salada de rabanete, nada mais alemão. E assim vamos percorrendo a Alemanha com belíssimas fotos. O livro não quer ser só lido e comido, quer te mandar para a Alemanha, também, e que dá vontade, dá muita. Na Baviera eu já ia comer meu prato preferido o Knödel, ah, o Knödel, de origem austríaca, comida para dia de chuva, para hora de chuva….Não tem melhor.

O Luiz Horta nos vem com surpresas, conta sobre os vinhos tintos alemães, por essa não esperávamos! São os Spärburgunder, vulgo Pinot Noir e muito bons!

Chegamos a Frankfurt, à sem graça Frankfurt, (confesso que achei bárbara, nada turística, boa para fazer compras e sem frescura.) E a receita é um rosbife com molho verde. Tenho a impressão que a Alemanha continua com a comida que mais gosta só que lindamente apresentada. Ainda bem, não queria me alimentar de camarões crus que mordem a ponta da língua da gente nem de matinhos que nascem nos trilhos do trem. É a velha Alemanha, modernizada e pronto. Torta de cebola, doces com maçãs e creme, tortinhas de morango, trutas com amêndoas, coquetel de camarão, halibut defumado.
Confesso que me deu vontade, muita vontade de ir à Alemanha, maldita hora que resolvi ler o livro. Queria comer as receitas, feitas pelos chefs, nos restaurantes tão bem descritos. E os lugares… Me lembrei tão bem do espírito alemão. Fortes, cara séria, risada gostosa escondida no peito pronta a saltar à menor bobagem que você faça ou diga, ingênuos de mentira, diferentes, amáveis, no sentido da palavra, que você pode amar e quer amar. Parabéns, Sabine Hueck, acho que a ideia era cativar o leitor. Você conseguiu.

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Sabedoria e calma na cozinha

Por Folha
01/10/14 02:00

Vamos lá, vamos tentar falar dele, Marcelo Rodrigues (1974-2014), nosso antigo chef que morreu tão moço. Vinha de Criciúma, tinha passado pela Inglaterra, um rapaz bonito, quase sempre de bandana, fala mansa, estudioso. Fez o curso da Anhembi Morumbi e nos foi indicado por Rosa Moraes, santa indicação.

Começou a trabalhar conosco ainda inocente do que era a pressão de um bufê. Muito estresse, cada vez um lugar diferente, pessoas sempre com emoções à flor da pele. Ele enfrentava com calma, sabedoria, tolerância e, ainda por cima, escondendo suas modéstia e timidez.

Procurava sempre qualidade de vida. A cozinha de grandes quantidades não é lugar para isso. Mas ele seguia reto, sem demonstrar o que o perturbava. Não lembro de escutar sua voz se alterar no comando. Como organizador era perfeito, quando chegava era para salvar.

Para neutralizar a experiência bruta de um cozinheiro, inventava moda. Resolveu ser vegetariano, e não havia ninguém que conseguisse tirá-lo do bom caminho dos brotos de feijão e do tofu. Emagreceu, ficou meio branquelo e retornou à carne com parcimônia.

Sempre o equilíbrio, sempre. Faltou a ele um pouco do exibicionismo de que um chef precisa para se promover. Certa vez, fomos Marcelo e eu a uma reunião onde estariam os melhores chefs de São Paulo. Era na antiga Daslu. No carro conversamos sobre cinema, livros, comida, o diabo a quatro. Ao chegar lá, com todas as chances de se enturmar, ficou quieto, calado, nem uma palavrinha, só escutando…

Nossos papos frequentes giravam muito em torno da família dele, da casa, das árvores do quintal, de cada fruta madura, da comida feita pela mãe e do pai. Seu sonho? Nenhum sonho de glória.

O sonho era voltar para casa um dia, abrir uma pousada serena, conversar de mansinho com os amigos, fazer caminhadas a pé, adorava a natureza, o friozinho das noites estreladas, a lareira, os pinhões.

Econômico. Já pensaram a benesse de um cozinheiro econômico?

Olhem um pedaço do blog dele, (Cumbuca Cheia) quando fotografou o pai fazendo um galo de panela. “Lá em casa as aves são abatidas com 2, 3 anos de idade ou quando dá vontade de ensopar uma galinha, ou quando eu resolvo passar uns dias lá. A carne é tão dura quanto saborosa e mais escura, de um vermelho intenso com muito colágeno, o que garante um molho dos deuses e se desmancha, par perfeito da polenta na linha.”

A certa altura resolveu que a vida de professor era mais leve. Foi dar aulas no Atelier Gourmand, o que não o impedia de nos ajudar toda vez que precisávamos. Parece que não tendo a festa como obrigação, podendo escolher, ficava menos aflito por dentro.

Adorava caipiragens de comida caseira, mas fazia um marzipan inigualável e inventou um patê de fígado de galinha que um desavisado poderia tomar como foie gras.

Mas foi embora para Criciúma e nem se despediu de ninguém. Estranhamos. E não voltou e nem vai voltar mais. Um cozinheiro equilibrado e ético. Sem comentários. Que tenha deixado para aqueles com quem trabalhou um pouco de sua serenidade jovem.

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A faca e a colher

Por Folha
24/09/14 16:02

Acho que nada é tão diferente quanto a faca da colher e nem sei de qual das duas gosto mais. Tenho inveja da faca –nada de freudianismos, por favor, da faca mesmo, vital, mata, corta, sangra, poderosa. Daria tudo na vida para saber cortar cebola como um cozinheiro afiado, acho uma arte, uma beleza.

Meu reino por ter facas amoladas por mim, como é bom saber tratar uma faca, a sua faca que faz exatamente o que você quer, destrincha a galinha com suavidade doce, solta as flores das hastes num só toque, divide, compartilha, transforma.

Já a colher é toda doce, sem perigos, ligada à criança e ao velho, protege a boca, sustenta a sopa. Se não é a melhor, sem asperezas nem quinas, por que nesses tempos tão modernos teríamos a colher de pau em todas as cozinhas e ainda a preferida? Quem ao mexer uma polenta, um picadinho, não corre para ela no meio de dezenas de outras, lá à mão?

A nutricionista contratada proibiu colheres de pau, como já havia proibido mesas de madeira. Suely, que cozinha com garra, com força nos braços adquirida em anos e anos de fogão, retruca que a colher de plástico se quebraria ou, pior, derreteria dentro da comida. Mas, segundo a nutricionista, é a lei, ora, a lei…

E tem tanta modinha chegando. Dessa vez, coisa que adoro. Servir comida em outros recipientes que não pratos. Na vida dos cozinheiros já tivemos novidades como o camarão na moranga, o arroz no abacaxi, salada de abacate nas suas metades, siri na concha e por aí vai.

Os grandes restaurantes do mundo não sabem mais o que inventar, usam folhas verdes, tábuas, cumbucas, granito, vidro, pedras comuns, casca de árvore, enfim, nada que caiba comida lhes é estranho. Os mais audazes podem jogar a sobremesa de chocolate quente sobre a mesa fria de mármore e a sobremesa se compõe ali mesmo, cada uma com um formato.

Fiz um casamento onde uma das comidas seria servida em cumbucas índias, negras, do Pará. Coisa preciosa. Os garçons e cozinheiros e copeiras jamais usam a louça da festa para comer. Desorganizaria tudo o que já está posto e arrumado nos seus lugares para a hora de entrar em cena. Pois nesse dia, quando chegaram para o almoço e viram as cumbucas, simplesmente avançaram sobre elas para se servirem num à vontade total.

Coisa atávica, um reconhecimento do objeto, do côncavo que haviam usado quando crianças, desde que se conheciam por gente. A cumbuca é feita para se comer nela, comida de caldo é comida de cumbuca. Foi uma dificuldade recolher tudo de volta, até os seguranças levaram as cabaças para seus postos. Era o prato de todos, o ur prato, do tempo da inocência, da fogueira, da água limpa.

Quer coisa melhor do que uma ostra na própria concha, bem tirada? Tem que ter boa função, não vale só pela belezura. Bonito e funcional. Não estou deserdando o prato. Claro que muitas vezes é ele o melhor substituto, mas como desdenhar a própria romã, por exemplo, e comer suas sementes num prato, de colher? Ou descascar a pamonha na cozinha?

É preciso tentar aprender a comer com a mão, na folha, no coco, na casca da tartaruga. De novo.

ninahorta@uol.com.br

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