Descobri no ano que passou que não é uma boa ficar uma velha sabida. Mas, as velhas não ficam sabidas porque querem, mas sim pelo tempo que passaram vivendo e estudando. (Não estou reclamando, eu também tenho um pouco de preconceito contra velhos, principalmente velhos metidos a jovens. Há uma revista muito conhecida que há anos quer me entrevistar e de vez em quando quase consegue. De repente me lembro que no meio da juventude ela sempre apresenta um velho(a) jovem, isto é, mostrando que a idade não o alcançou. Ou nadando, ou fazendo maratonas, correndo a São Silvestre, aguentando peso, andando no parque pela manhã e pela tarde, de cabeça para baixo numa corda. ) Odeio. Sossega, velho.
Mas, vamos fazer uma brincadeira de ano novo. Pensar juntos três minutos. Pensem, quando um dos meus funcionários nasceu eu já vinha estudando cozinha diariamente há quarenta anos. Vocês já pensaram o que são 40 anos de estudo de uma mesma matéria? E agora, o cara, quer viver como adulto, ter a sua palavra acreditada, é a vez dele saber. E você, a velha (não uso a palavra desrespeitosamente, mas somente como um fato) vem comendo, cozinhando, viajando para comer desde 1970. Viu o fim da cascata de camarões, viu a comida americana ensaiando seus galhos de vampira em todas as publicações da época, assistiu a chegada da Nouvelle Cuisine, imitou vorazmente, quis saber de tudo que ia por trás, frequentou professoras totalmente afrancesadas e clássicas, e de repente abriu um buffet.
Enfim, sete anos é o tempo bom para os estudos e apresentação de uma boa tese de doutorado. Já imaginaram 50 anos de estudos diários, de leituras, de interesse, 26 anos de experiência com fazer festas, 26 anos de escrever um artigo semanal sobre comida? Já pensaram quantas coisas precisou ler ou fazer numa quarta feira sem inspiração?
O que estou tentando dizer é que conviver com o velho no trabalho realmente não é fácil. Quando você que é moço ou moça resolve vender biscoitos para um supermercado, o velho disfarça mas sabe que aquele produto não vai dar certo, é muito barato, o lucro seria ínfimo, não daria para dividir os lucro com o intermediário. Quando aquela moça promete todas as festas de formatura de São Paulo em troca de um jantar grátis para 10 pessoas, o velho sabe que o máximo que ela vai te dar é uma menção num blog que ninguém lê.
Você sabe das coisas, já aconteceram muitas vezes, mas o jovem está ali, cheio de esperanças, vai ficar rico fazendo torradas para a rede de mercados. E o pior é que você tem que deixar que ele experimente, pois senão ficará aquele travo azedo, do “eu não fiz” porque não deixaram.
Mas, nessa épocas de vacas magras, nem sempre podemos perder um cliente bom porque o cardápio não estava exatamente como ele queria, entrar num projeto que não tem chance de dar certo. Deixar que o jovem faça a coisa errada para aprender pode te levar a falência e tudo tem limites.
E a menina que diz cozinhar maravilhosamente fica longe do fogão, atendendo telefone. Quando interpelada responde, altiva. “É que cozinho à francesa…!”Pois é, cozinha à francesa, não pode nem fazer uma panquequinha brasileira? O que significa, “não posso cozinhar aqui, cozinho à francesa!” E a velha que não é burra nem nada, fica de olho parado, pensando no que aquilo quer dizer.
Sem contar os erros de português. Um detalhe ridículo, diriam.Pensam que o velho é obsessivo com erros. Longe disso, para ele o importante é a comunicação, erra no facebook, no blog, com volúpia de liberdade, não procura no dicionário, nem no Google, está apenas batendo um papo, vamos deixar os errinhos de lado.
Mas, não admite aqueles cardápios todos errados, com os nomes de comida em francês e inglês macarrônico. Se vai errar, por favor, erra em português, fica ridículo se meter a escrever noutra língua e escrever errado.
E para corrigir os cardápios já batidos?? Outra vez o velho quer corrigir, passar por cima da sapiência do jovem. Deixa ele errar! O velho não deixa, não, ou melhor, tenta não deixar. No facebook, tudo bem, em e-mails tudo bem, mas não no serviço, onde as palavras se repetem dia após dia. Quantas vezes um velho é capaz de dizer que peru não tem acento, só Itaú tem acento, por Deus!
E o currículo de quem se diz fluente em inglês, francês e espanhol? Gentem moços, vocês sabem o que é ser fluente em outra língua? Só de escreverem que sabem tão bem três línguas o velho fica ressabiado. Na verdade, a linguagem técnica da Cozinha é passível de ser aprendida mais depressa do que uma leitura aprofundada de Shakespeare, mas para o velho, fluente, quer dizer que sabe traduzir uma receita em 5 minutos.
Realmente, é um inferno, o velho já sabe tudo. Pudera, começou a estudar inglês com 5 está com 60, estudou inglês por 55 anos!!!! E ainda não sabe! E não sabe mesmo, uma língua estrangeira pede até uma posição de corpo diferente, uma postura, um jeito, uns macetes que não se aprendem na escola. O velho fala a verdade, sabe ler como se fosse sua própria língua, senão melhor, e escreve e fala mal, são habilidades diferentes.
Já contei da menina que entrou no buffet para digitar e sabia inglês na ponta da língua. Não acreditei, era muito jovem e tinha cara de não saber nem português. Coincidiu que na mesma hora uma promotora pediu um cardápio em português e inglês. Demos para ela. Um tempão depois chega o resultado. O primeiro prato era uma salada de alface com sleeves.
Que diabos seria aquilo? De repente veio a luz. Salada de alface com mangas. Se você procura no Google vêm todas as mangas, inclusive as mangas de roupas, as sleeves.
E o velho tem que ficar calado? Não, pelo menos tem que mudar para mangoes. E eis o digitador desautorizado e com ódio da velha.
E fazer cardápios? Não sei se é um dom ou um aprendizado. Às vezes você é um cozinheiro das Arábias, mas não tem aquele golpe de olho do velho que já aprendeu depois de muito errar. Sopa de abóbora, salmão, uma massa com um molho safadinho de tomate disfarçado com creme de leite para não secar muito rápido no réchaud?
Muito bem, chef, você só se esqueceu que é tudo da mesma cor!!!!! Tudo cor de salmão!
E o que mais que o velho implica? Com compras fora de propósito, muita flor, muito óleo de trufa, velho que é velho mesmo odeia óleo de trufa, trufa de mentira, não ponha trufa nos cardápios! E todos acham tão lindo e tão chique!
E o velho ainda por cima lê. Lê tudo que passa pela frente sobre cozinha e sobre qualquer outra coisa. Acho que tem mais tempo, não pode passear tanto, gosta de ficar horas e horas sozinho, e então o velho lê. Não que deixe de assistir o Bourdain, a Nigella, o Jamie Oliver. Dá para assistir enquanto se faz um tricozinho.
Ah, e o velho pena! O velho precisaria ter muita autoridade, saber tratar os funcionários com autoridade, eles gostam. Mas o velho não sabe. O velho é low-profile, sempre com a esperança que o jovem descubra debaixo daquela modéstia fingida que ele sabe quase tudo e continua querendo saber e estudar e ler, e fazer e experimentar que está ali, pronto a ensinar. Pronto a responder, pelo menos. Louco para passar adiante aquele conhecimento acumulado que ele não pode usar por ser velho. É isso, o velho tem limitações que deveriam ser supridas pelo jovem que enquanto isso aproveita para aprender.
O velho não tem pernas para correr feiras e mercados todo dia.
As mesmas pernas não permitem que ele procure novidades de mesa, de serviço, em fábricas do interior, em bairros especializados, em shoppings.
O velho tem preguiça de fazer visitas técnicas, pois o seu tempo é pequeno, não deveria ser gasto em contar espaço para os fogões, criar sobre a casa alheia. (Coisa que ele sempre adorou.)
E coisa que o velho mais gosta é quando descobre alguém que sabe mais do que ele, com o qual pode aprender e conversar. É mentira grossa que o velho não gosta do jovem que sabe, que tem olhos brilhantes. É um alívio tão grande, ter alguém com quem conversar sobre comida, alguém que entenda uma novidade.
Porque é assim, como se o jovem fosse surdo ao velho. Ou ele não acredita em alguém com mais de 30 anos.
No fundo, fundo, estou falando mal dos dois. Do velho e do jovem. Do patrão e do empregado. Do mestre e do aprendiz.
O mestre deve analisar bem quem vai colocar ao seu lado e se não for gente de bom estofo, não adianta pagar o dobro do que em outros lugares. Ele ficará ainda mais acomodado. A ideia é que ele seja substituído sem mais delongas por alguém que queira aprender e trabalhar bem.
O mestre, o velho, tem a obrigação de ensinar e de treinar. Se não encontrar campo fértil, vá procurar noutro lugar. Os velhos não podem desistir nesse momento brasileiro. O jovem precisa estar bem preparado para o que der e vier. E o velho terá sido irresponsável se não o ajudar a ser crítico, polifacetado, aberto, responsável e honesto.
É a bandeira do ANO NOVO. Que os velhos ensinem e que os jovens aprendam.(ou estudem sozinhos, não podem ficar é parados esperando o Espírito Santo baixar)
Matracas soam no ar e o champagne espouca. Vamos à festa. Velho fala demais. Ah, e podem deixar o velho em casa. Ele sabe se divertir sozinho.