Comer é sexy
12/11/14 02:00O prédio ainda está lá, azul e branco, enorme, no Jardim Europa, e tinha fama de ser a melhor escola para meninas no Rio de Janeiro. Duvido. Em São Paulo, a pior do mundo com freiras espremidas em roupas medievais, saias em camadas, rodadas, e o toucado triangular na cabeça, prestes a levantar voo.
Mère Maria da Glória, linda, contava que no dia de receber o véu e se consagrar a Jesus, depois de lhe terem raspado a cabeça, foi levada para a cerimônia onde encontraria a família, já vestida de pinguim. Sentia uma dor aguda no crânio e imaginava, resignada, quantas almas salvaria do purgatório dedicando a elas aquele sofrimento.
À noite, já longe dos pais e da festa, diante do crucifixo e do catre, uma outra freira foi lhe ensinar a se despir, peça a peça, uma substituindo a outra para que o corpo não ficasse exposto ao ar nem por um minuto. Ao retirar-lhe da cabeça o véu triangular, a irmã de hábito encontrou um alfinete espetado diretamente no seu crânio careca, sob a pele. Tanto pior para as almas do purgatório.
Durante os oito anos que passamos lá até essa história íntima escutamos, mas jamais, jamais vimos as freiras comendo. Não sei onde era a cozinha, provavelmente ao lado do refeitório das internas, mas nunca vimos um fornecedor com uma alface na mão ou alguém cuidando de panelas. O que não nos preocupava nem um pouco atarefadas em subir à alta torre proibida para apreciar a paisagem, tentar invadir a clausura, pular o portão da frente quando chegávamos atrasadas.
Uma vez quase fui admitida ao segredo da comida ficando lá para almoçar. Tínhamos freiras de todas as partes do mundo, de Jacarezinho à França e à Irlanda. Parece que o menu foi escolhido pelas bochechas vermelhas de Mère Fintan, a irlandesa, que me deu um prato fundo de batatas ensopadas com salsichões.
Num piquenique, a mais jovem das freiras caiu em pecado na nossa frente. Vermelha, colheu uma ameixa amarela e a comeu, boca tampada por um grande lenço de linho. À medida que mastigava o seu rosto caía e acabou a comilança quase chorando.
Não que fossem santas de altar. Mère Maria da Cruz, olhos verdes faiscando, se lançava sobre nós quando tomávamos água no mesmo bebedouro, as internas só podiam tomar banhos de camisola, notava-se uma ciumeirinha em torno de algumas alunas, separavam as melhores amigas no fim de cada ano.
As aulas práticas não eram de cozinha e, sim, de bordado, enfim o maior pecado era mesmo comida. Também não comungavam na nossa frente. Pelo visto comer era sexy demais. E como o marido ou noivo delas era Jesus, e um só para todas, a parte sexy sobrara para o comer.
Gostaria de acabar o artigo falando sobre o sagrado e a comida, sobre o viver desapegado dos bens materiais, da carne, do prazer, mas, de verdade, o que acho é que tinha muita freira doida nos anos 1950.
Nos anos 1960, elas meteram perucas na cabeça e foram trabalhar, dançar, cantar, beber e brincar. E comer muito, com certeza. De minissaia. O que frustrou totalmente a minha pesquisa que já ia alentada em torno da atitude delas junto ao alimento.
Vamos falar de arroz? Qual seu jeito preferido de comer arroz? Suas manias?
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Nota-se muito isso na imprensa. A maneira certa. Não discriminar discriminando. O saudável. Os bons e os maus. Os inimigos modernos são: os “bandidos”, os corruptos, os sedentários, os “intolerantes”, os racistas, os discriminatórios, os pedófilos, os terroristas, os anti-sociais da sociedade contemporânea (enfim, o outro, subjetivo ou não). A norma é classificar, rotular, excluir.
Nina Horta, além de todo o prazer em ler você, descobri pela crônica de hoje, que estivemos na mesma época, no mesmo colégio… Além de mére Fintan havia também Mére Assunção(“escreva cem linhas – não vou falar durante a aula”), Mére Maria do Carmo (“não saia da fila”)etc. As internas rezavam em voz alta durante o banho, e tudo o mais. E da comida no internato jamais esquecerei. Não podíámos deixar restos Punhamos bolinhas de arroz no bolso do avental para jogar no jardim no recreio. Mas alguns professores eram excelentes e também aprendemos a bordar e ter aulas de pintura na torre. Foi muito bom ler a sua crônica. Me senti acompanhada. Abraço, Mary
Excelente ilustração da observação do cotidiano da época; histórias pitorescas para os dias de hoje. kkkkk