Tradição recente
29/10/14 02:00Peguei um livrinho míni, mas inteligente e conciso, de uma editora que eu não conhecia. Chama-se “Pasta e Pizza”, de Franco la Cecla, da Prickly Paradigm Press.
O autor conta que não se comia macarrão na Itália até 1860! Pelo menos não era a comida típica italiana. Só depois que o Estado se unificou é que se foram construindo pontos de referência comuns dentro do mosaico fragmentado que era a Itália.
Uma prova que quase não se comia macarrão vem dos apelidos das gentes das várias regiões. Mangia rapi, mazzamarroni, mangia fagioli, pane unto, cacafagioli, cacafoglie ou mangiafoglie. No século 16 só os sicilianos mereciam o epíteto de mangia maccheroni.
Não foi o patrimônio artístico da Itália que conseguiu moldar o perfil do italiano. Foram a mamma, as conversas na calçada, a domesticidade, os grandes gestos ao falar, essa aparente trivialidade, mais fácil de ser observada e assimilada que marcou no mundo a “italianice”. O restante era muito complexo.
Para fazer essa recomposição do perfil italiano ou para inventá-lo, um bom começo era a comida. O “ser italiano” poderia ser reconhecido por meio de uma comida única ou mais característica.
Foi um marketing e tanto. Se em 1860 o macarrão era pouco comido na Itália, algumas décadas depois tornou-se o logo e a bandeira para que se reconhecesse mundo afora a italianice. (A pizza também sofreu o mesmo processo.)
Outros autores estudaram as cozinhas nacionais e confirmam que elas não existem na realidade. Um povo precisa dessa cozinha só em momentos de crise, de mudança políticas. Uma autora famosa afirma que uma cozinha nacional ajuda a traçar os limites de uma identidade política e, para criá-la, é comum que compactem, sintetizem cozinhas regionais e locais e formem um estereótipo juntando cacos daqui e dali. Na Itália, o livro que efetuou o milagre foi de Pellegrino Artusi. “La scienza in cucina e l’arte di mangiar bene” (a ciência da cozinha e a arte de comer bem), de 1891.
Com a imigração italiana para os Estados Unidos, a Itália viu um reforço para uma cozinha nacional. Aproveitou-se também de uma onda de comida saudável, mediterrânea. Ugo Tognazzi descreve o processo de adaptação da comida italiana a um outro país quando teve que fazer um gigantesco espaguete à carbonara para 50 convidados no hotel Hilton de Nova York para o lançamento de um filme seu.
Pensou. Todo mundo é americano. O que poderia agradá-los? Descartou o “spaghetti al pomodoro e basilico” porque poderiam confundir com pizza. Deixou de lado o “alla matriciana” com medo da qualidade do tomate americano. Por eliminação chegou ao “alla carbonara”. Onde encontrar coisa mais americana do que ovos e bacon?
E juntaria um pouco de creme de leite, pois os americanos põem creme de leite em tudo. E uma bebidinha também, que não faz mal a ninguém. Ora, o que é o macarrão senão trigo processado? E os americanos adoram seus sanduíches. Os italianos acham que as massas são milagres de Deus para um povo sofrido. Mas o macarrão não é somente pão feito de outro jeito?
Quem se interessar leia esse livrinho simpático, pois aqui não cabem duas páginas dele. E nos dá bastante pano para pensar.
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