Venha de onde venha
27/08/14 02:00Há 20 anos peço aos leitores que mandem seus menus diários, os mais simples possíveis. Eu tinha dentro de mim a ideia de que seria tão fácil conseguir esses testemunhos… Nada.
Viajar Brasil afora, estudando? Já pensaram três dias em cada vilarejo do Brasil, passaria o resto da vida viajando sem aprender de verdade. E também nem sei como os pesquisadores se arrumam para compor teorias. São tantas as variáveis que eu enlouqueceria.
E comida pega como um rastilho. Percebo no bufê, por exemplo. É só inventar uma bobagem que no dia seguinte já aparece em todos os outros bufês. E vice-versa, fazemos o mesmo com os outros.
Por exemplo, como o sanduíche é tremendamente prático para coquetéis e, por isso mesmo, “batido”, inventei de diminuir o tamanho deles. Até escrevo nos menus, “sanduíche do tamanho de uma unha”. (Os clientes não sabem que estou pensando na unha da cantora Alcione, que tem um centímetro, mais ou menos.) Refrescante, leve, mínimo, vem durando mais de 20 anos. Acho que pode ser chamado de um clássico.
Só conto isso para chamar a atenção ao fato que um historiador de comida, de hoje a 200 anos olhando fotos, possa dizer que no século 21 os sanduíches eram quase invisíveis. E vai estar absolutamente errado, terá deixado de lado o sanduíche de pão francês com pernil, o que fará uma falta dos diabos.
E como fazemos comida indiana muito bem, lemos muito sobre o assunto e percebemos que os indianos gostam de servir o seu sorvete de doce de leite em pirâmides altas.
Fomos atrás das formas e hoje, em casamentos e quase toda festa, lá estão os sorvetes em pirâmide como se fôssemos indianos da gema. E no futuro teremos alguém estudando como a forma da Índia veio parar em São Paulo.
(Não é propaganda do bufê, não, só falo nele porque está fechado, esperando há oito meses a reforma que uma construtora vai fazer por ter inadvertidamente causado uma racha que nos impede de trabalhar.)
E os charutinhos de folha de uva que são difíceis de servir e inventamos de colocá-los em “steamers” de bambu chinês, pois ficam quentes sem queimar, úmidos e cabem em várias camadas ao mesmo tempo?
Já pensaram a confusão na cabeça do antropólogo descobrindo a mistura da Turquia das Arábias com a China?
Quero comparar a comida dos escravos vindos do mesmo lugar da África. Como se come na África, como se come aqui e nos Estados Unidos, por exemplo. Está bem, tem quiabo nos três lugares, mas no sul dos Estados Unidos é unido com molho branco e filet (um espessante), é ingrediente do onipresente gumbo, de influência francesa, e aqui no Brasil qual gumbo qual nada… mas sim, caruru. Em compensação, muito bolinho frito tanto aqui como acolá, acra, acarajé, a mesma coisa e por que não temos a tradição da galinha frita que eles têm?
É difícil. Gosto desse assunto, gosto, mas de vez em quando dá vontade de ficar só fazendo fichas de receita, à mão, como antigamente, e guardando no fichário e pronto. Venha de onde vier, não me importo. Se for boa, comemos; se não for, rasgamos a ficha e pronto.
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Nina, que prazer ler seu texto! Eu acompanho suas matérias e, hoje, resolvi mandar um sonoro OBRIGADA pela forma adorável de tratar o leitor, de falar de gastronomia com tanta delicadeza, de manter essa conversa quase ao pé do ouvido conosco!! Delicia de prosa, Nina! Não conheço seus talentos culinários mas , a julgar pela maestria com as palavras, você deve ser fera!!! Obrigada por nos brindar com seus maravilhosos textos. Beijinhos,
Buraco Quente
Hoje lembrei de um sanduíche de muito boa fama. O Buraco Quente. O Buraco Quente é um pão francês recheado com carne moída, com ou sem molho. O afamado pão com carne moída. Faz muito sucesso em festas religiosas e casamentos. É um salva-vidas quando se trata de um momento em que há fome, mas não se sabe o que comer. Qual é a primeira coisa em que se pensa? Num Buraco Quente, logicamente. Daí é só comprar uns filões, tirar a carne moída da geladeira; a cebola; o alho; e (no caso de Buraco Quente Molhado) o molho de tomate. Sal a gosto. Daí, depois de preparado, é só comer. O buraco de seu estômago vai ser preenchido. O vazio da sua alma vai ficar inundado pelo bom gosto de uma comida simples e nutritiva. Você vai dar pulinhos de alegria. Seu pau vai subir. A vida vai valer a pena, finalmente. Você não vai mais pensar em se matar. Sua família vai ficar contente com você. Seus amigos irão lhe dar flores. Seus vizinhos cantarão ao seu regresso. Sua rotina será perfeita. Suas bolas tremerão de satisfação. O Buraco Quente vai te tirar do buraco.