Um grande poeta
12/02/14 03:01“Que ela chegue sem clarins ou trombetas, entre como facho de luz pelas gretas da janela e atravesse o quarto na sua claridade. Que ela chegue inesperada, como a chuva na tarde calorenta e faça subir o odor de poeira molhada. Que ela chegue e se deite ao meu lado, sem que a perceba. Que me lave com água da fonte e me cubra com o bálsamo branco do silêncio (Donizete Galvão, in “Mundo Mudo”).”
Publiquei aqui e-mails do poeta Donizete durante muitos anos. Eu não resistia, eram sempre sobre comida e muito bons. Agora ele morreu, sem aviso, sem barulho.
Era guardião da coluna, sempre atento, comentando, criticando, rindo e, sendo o grande poeta que era, adorava se disfarçar de mineiro da roça. Como entendia de abobrinhas verdes alumiando no chão dentro de campos e milharais… De piabas prateadas. De canjiquinha, de frango com quiabo. De homens fortes, mãos calosas da roça. Bom, era tudo a raiz da infância de mangas e goiabas no pé e, depois, do susto da cidade, do cimento, da rua cinzenta, da experiência do amor.
Dentro da jequeira que adorava fingir, entendia o que era uma comida fina e boa e outra só de modinhas ridículas. E ria, generoso, compreendendo tudo, elogiando o que era bom, juntando pessoas, puxando o brilho dos tímidos, misturando gente, sem pudor, um grande poeta, mas, antes de tudo, um homem bom. Um homem natural. Um homem comum, o que o fazia o mais incomum de todos. Essa coluna vai se lembrar dele para sempre, dos seus e-mails, das suas respostas que nunca falhavam, das suas perguntas irônicas.
Havia contado a ele que estava com vergonha de falar, simplesmente falar, pois havia ido almoçar com uma amiga, inteligente, editora até, e a certa altura da conversa ela tirou um caderninho do bolso e começou a tomar notas. Intrigada, perguntei que musa baixara nela naquele calorão de churrascaria. Não, é que gostava de tomar nota de palavras que não conhecia e eu era mestra nelas.
Enfiei a viola no saco. Ela percebera que meu vocabulário simplesmente caducara e tentava salvar o que podia.
Fui direto ao Donizete, que adorava palavras e que começou a colecionar algumas que via nos jornais, bem fora de propósito para me consolar. Ele conhecia todas e mais algumas, era o seu ofício sério de poeta brincar com elas.
E o que mais me arrependo de tudo era não ter elogiado seus poemas como mereciam. Quando o conheci fui avisando que seria pobre crítica e leitora, pois a poesia me dava medo, era sempre um poço sem fundo onde eu não queria cair e me segurava nas bordas para não sentir o choque do gelo daquela água. Ele não insistiu, mas um dia me deu a obra completa do T.S. Eliot, vai entender!
E agora, Donizete, como estão as coisas? Queríamos tanto saber de você! Já entendeu tudo? Está louco para nos contar a simplicidade que é o mistério da vida? E que valeu toda a pena do mundo ter sido quem foi? O amoroso pai, marido e amigo? A morte tem gosto de cerveja gelada ou é uma água pura, que mata a sede? Doni, nem mais um e-mailzinho?
Bela crônica, bela definição desse amigo, nunca conheci um jeca tão refinado. Esse amigo tão presente na vida de tanta gente, que fico me perguntando: quantos ele era?