Línguas
03/07/13 01:39Estava lendo um livro sobre traduções, a quase impossibilidade delas, quando me dei conta do problema idêntico na tradução e na transposição de receitas culinárias de um lugar para outro. Acabei de fazer um curso na internet e havia um capítulo sobre “Madame Bovary”. E, é claro, os americanos liam em inglês. Cada frase me deixava estuporada, tinha que ir correndo ao original par ver se estava errada. E era igualzinha, só que não.
No livro “Frutas”, da inglesa Jane Grigson, ela ensina como descascar uma manga. Nem marcianos descascariam uma manga assim, me dei conta, de novo, que ingredientes que não temos num país são enigmas para nós, de alguma maneira. Alguém vê uma jaboticaba pela primeira vez. O que lhe ocorre? Dá para comer, o que se come? É para descascar? Engole-se o caroço? Já dá para comer verde ou tem que esperar ficar preta? Quando está mole, está boa?
E o kiwi? Descasca-se, corta-se ao meio no sentido da largura ou do comprimento? É de chupar, comer em rodelas, ou comer de colherinha dentro da casca? Perceberam? Vi goiabas na Fauchon que seriam jogadas fora por uma criança de três anos de idade e o cheiro permeava a loja, cheiro de trópico podre, decadente.
Não temos que ser só bilíngues para traduzir uma receita, mas biculturais, “possuidores de todo o complexo de emoções, associações e ideias que relacionam a língua de uma nação à sua vida e tradição”. Diz o livro que leio, sobre traduções. Claro. Fauchon pode dar o nome científico da goiaba, de onde veio, em qual mês estaria pronta para ser comida, sua origem, mas ela continua impermeável para os franceses.
E nós, ao lermos uma receita de ruibarbo, se tivermos o bichinho à mão, podemos fazê-lo, mas sem saber ao certo se é para o almoço, para o lanche e com o quê combina bem.
Ao lermos, no entanto, a palavra goiaba, o que vem à nossa cabeça?
Cozidas à Pedro Nava “têm a polpa quente e corada como o dentro dos beiços, o embaixo da língua e o fundo das bochechas”. Em compota são como “orelhas em calda”.
Na sua estrutura, é uma árvore criada para criança subir. O tronco liso e tortuoso, esgalhado, abrindo espaços, de um marrom muito claro. É só passar a unha e o verde claríssimo aparece, contrastando com as formigas passeadeiras.
As flores das goiabas nascem nos sovacos dos ramos novos e são brancas, perfumadas. A goiabinha se forma em verde escuro, vai clareando até ficar “de vez” com um gosto adstringente que é a hora da verdade da goiaba.
Dali, descamba para o fruto marchetado de pintas duras e pretas como pregos ou são bicadas por passarinhos, ou se esborracham no chão com um cheiro forte e almiscarado, exagerado, penetrante, ruim para sermos mais precisos.
A goiaba é nossa, a “guava” não é deles. Eles nem desconfiam do bicho da goiaba. Nem sabem que para comer uma goiaba boa há que se morar perto do pé, e nós não sabemos que uma maçã de beira de estrada pode ensopar nossa blusa de um caldo doce-azedo, o que explica ser ela a fruta do bem e do mal.
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