A mulher na última ceia
06/04/12 12:23Já acordava em paz naquelas manhãs em que se pressentia a primavera. O seu dia não começava com o canto do galo, mas com o cacarejar das galinhas, com seu ciscar nervoso debaixo de sua janela, os pés raspando o chão com fúria. Lá, um dia desses, iria pegar a mais gordota e fazer dela um caldo de não mais se esquecer.
Mas era quinta-feira e era o dia de Páscoa, da festa do pão ázimo. Melhor faria em saltar da cama e ir cuidar de seus negócios.
Tinha mais era que dar graças a Deus por ter alugado outra vez a sala grande para uma ceia. No ano passado, o dinheiro viera a calhar, comprara mantimentos e até um lenço azul-rei que lhe continha o cabelo grisalho e rebelde. Desta vez o filho arrumara os clientes. O milagreiro e alguns amigos, ao que sabia. Queriam, além das coisas de costume, uma bacia e um jarro de água. Fácil. O filho se encarregaria da comida.
Pegou a vassoura mais rija e saiu para a limpeza. Era a época em que renascia nela uma vontade de ordem, de botar tudo abaixo, varrer, varrer, de fazer uma enxurrada clara passar pelo meio da casa arrastando com ela cobras e lagartos e qualquer sujeira outra. Ufa.
Odiava Jerusalém naqueles dias de sacrifícios. A Palestina inteira baixava nas ruelas, nas tabernas, invadia o templo, o mercado, ria, cantava, brigava, tudo muito alto, muito brilhante, um exagero. Risadas de vários matizes que soavam estranhas aos ouvidos dela. E os guias chamavam os peregrinos com bandeiras vermelhas, suados, apontando o caminho dos túmulos dos profetas. Avalanches de lixo. Não era coisa para mulheres velhas, não era mesmo.
Agora, o pior não eram nem as gentes, mas os bichos. Todos aqueles cordeiros a balir desesperados, agoniados, o ar quente como o de um braseiro, pêlos molhados de sangue coagulado, sangue por todos os lados, escorrendo em regos pela pedras, sangue juntando-se em poças, um terror.
Até que o cheiro de gordura queimada não lhe era repugnante, longe disso. Há uns tempos haviam comprado um daqueles animais de rabo longo e gordo, um carneiro de raça diferente. Os donos atrelavam um carrinho de duas rodas ao animal, que carregava assim seu próprio rabo para não feri-lo nos caminhos esburacados cheios de pedrisco e terra encruada.
Tinha ganas de rir ao ver assim os pobrezinhos, mas todos sabiam que a melhor banha de cozinhar vem da cauda gorda. E do jeito que a preparava, então… Derretia a gordura num caldeirão grande com pedaços de maçã, marmelo e cebolas inteiras. Ficava um óleo grosso, fragrante, que fazia boa toda a comida que fritava.
Ai, tantos pensamentos lhe vinham hoje à cabeça, havia que espantá-los para que o trabalho rendesse.
Limpa a sala, era hora de forrar as almofadas e cobrir a mesa baixa. Tirou os linhos do baú, linhos cheirosos que de vez em quando abria ao sol. Passaria as toalhas a ferro. Parou, olhou, pensou um pouco e decidiu que gostava mais delas assim, marcadas nas dobras cuidadosas.
Desceu a escada que saía por fora da casa, lá de cima, do segundo andar onde estava a sala, e que levava direto à horta. Desceu até que lépida, mas de costas, segurando com força os corrimãos. “Chô, chô, galinhas, nada de querer entrar além da cerca, a comer meus verdes. Já me bastam os moleques, nestes dias. Saltam o muro para colher as alfaces, o agrião, o manjericão, os rabanetes e saem a vendê-los pelos olhos da cara para a ceia. Mas não as daqui de casa, seus marotos. Não as daqui.”
Juntou um molho de coentros, o restante da chicória que as lagartas enchiam de furos e arrancou do mais profundo da terra uma raiz. Deixou a romãzeira por último. Quebrou com cuidado dois galhos fortes e limpou-os das folhas. Os homens espetariam o cordeiro em cruz e o assariam sobre brasas. Levava muito tempo a assar, e a carne se enternecia, tornava-se doce, quase soltava dos ossos, boa para comer com o pão e a verdura.
Haveria mulheres e crianças na ceia? Nos outros anos, sim, e um dia antes já a haviam convidado a festejar com eles. Bem, ficaria por ali, a ver.
Foi saindo da horta, fechou com cuidado o portão arruinado e viu lá longe os homens que se aproximavam como que curvados sob o peso do cordeiro e de outros apetrechos. Teve um arrepio fundo, de tripas, e correu a beber água fresca.
Prá lá doenças e arrepios. Dia de Páscoa, de esperança, de agradecimento, queria se arrebentar de ser feliz, de comer e beber e cantar hinos.
que lindo mesmo.
É um prazer ler um texto da Nina. Sempre é tocante
Verônica, que vergonha, vocês ficam me elogiando e o pior é que fico bem contente. Beijo.
poesia pura, iluminada e doce, até senti o cheiro dos linhos tirados do baú
Ah, que generosa! Volte, volte sempre!
Que lindo, Nina!
Obrigada, Suely. |Volte sempre. Beijo. Nina