Mock-entrevista com Saul Steinberg
03/03/12 23:58N – Só agora saiu em português a autobiografia a quatro mãos com seu amigo Aldo Buzzi. É um livro pequeno, afinal quatro capítulos para o desenhista mais conhecido do mundo é pouco. O que mais me surpreendeu foi como a comida tomou um viés tão importante na sua biografia. Foi quando descobri que o seu amigo Aldo Buzzi escrevera um livro de cozinha que o senhor ilustrara.
SS – Certo, O Ovo e Eu. Muito interessante o livro dele. Muitas vezes o uso para fazer uma omelete ou mesmo para reler e me divertir um pouco. Aldo sempre foi muito erudito e espirituoso e nós dois tínhamos o mesmo gosto por comida boa.
(Reflexos e sombras – Saul Steinberg e Aldo Buzzi. Ed- IMS)
N- Então vamos começar com as lembranças de infância, afinal são sempre as que mais nos marcam.
SS- Fui um menino pobre na Romênia. Não, exatamente pobre, mas com aquela vidinha apertada, ida e volta ao colégio, brincando em casa na fabriqueta do meu pai. Era uma sociedade sem mistérios. Tudo se passava em volta de grandes pátios, para onde davam as casas, com as janelas abertas, onde, imagine, todos podiam olhar, espiar.
N- Sei que tem um nariz muito afiado para cheiros.
SS – Afiado e grande. Uma vez o editor da New Yorker me chamou pedindo que diminuísse o nariz das pessoas, que na América os narizes eram menores. Fingi que concordava mas nunca tirei um milímetro do nariz de desenho algum.
Gosto de me lembrar dos cheiros, mas só sinto algum específico quando ele aparece. Não sou capaz de trazê-los ao nariz por vontade própria.
N-Seu pai era encadernador de livros, entre outras coisas. Um lugar muito cheiroso, sem dúvida, papéis, colas, tintas, caixas, daí deve ter vindo sua paixão pelos lápis, por papel, por cores.
SS- E me lembro de tudo, da Páscoa judaica quando o trabalho aumentava pois era preciso fazer muitas caixas para o pão ázimo que seria servido. Estes pátios internos das casas eram muito interessantes. Nós, as crianças, gente trabalhando, muita galinha, de vez em quando um porco. Galinhas eram consideradas como gatos e cachorros. Podiam entrar em casa sem problema. Mas, ai de um pato se atrevesse a passar o umbral da porta da cozinha. O ganso entrava sem perguntar, tinha autoridade. Os galos andavam com passos de bailarinos, ou às vezes em marcha militar.Reparou nos meus desenhos de paradas militares? Vem muito desse andar de gansos, um atrás do outro.
N- E a comida, como era?
SS- Judaica, um pouco russo-polonesa, um pouco do norte da Romênia, à maneira húngara, muita páprica e legumes. Aos sábados servia-se um prato especial preparado na sexta, e depois deixado sobre brasas para não esfriar; e que por fim na hora de comer era transformado numa espécie de gelatina que já não se parecia nem com o frango original nem com coisa nenhuma…Mas, em matéria de comida acho que deveria me lembrar mesmo foi da inspiração que carreguei comigo das linhas e laços e círculos dos bolos que minha mãe decorava.
Escrito por Nina Horta às 22h26
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Milão e Washington
N – E foi estudar arquitetura em Milão…
SS – Ah, foi maravilhoso. Me senti pela primeira vez sozinho, dono de mim mesmo. Vivi oito anos lá, mas em 1940, um pouco antes da entrada da Itália na guerra eu sabia que seria preso por ser judeu. E fui.
N- Sofreu muito na prisão?
SS – Não. A dieta principal dos presos era pão e chá. Não havia café. Em vez de açúcar usávamos um pouco de mel, uma bala, até pão para imitar açúcar pois molhado, fica doce. Havia um enorme tráfico de pão, pão fresco, pão seco, pão de todas as cores, com ervas, algum tempero, um pouco de cebola.Fazíamos sopa e até torta de pão.
N – Nos Estados Unidos, só morou em Nova York?
SS – Não, além de visitar o país inteiro morei uns meses em Washington., em 1966,como artista residente do Smithsonian.
N- Deu-se bem, lá?
SS- Fui muito bem tratado, mas detestava Washington e toda a sua hipocrisia, a hierarquia política, odiei a mascarada. Conheci os todos os personagens da vida política da época e as mulheres que eram mais detestáveis ainda.
Só sabiam a etiqueta de receber e o que se fazer nos jantares, mas não cozinhavam nem comiam, não seria próprio, era contra as regras.
N – Bom, deveria ser realmente um mundo muito novo para o senhor.
SS – Foi bom. Aprendi a comer com muitos garfos, com muitos copos, a não beber a lavanda, a não comer certas verduras e frutas da decoração, e não pegar a maçã da boca do leitão.
N- Pelo jeito não gostou nada. Deve ter sido até um pouco esnobado, por lá. O senhor morava em casa ou apartamento?
SS- Casa, belíssima, maravilhosa. O cozinheiro era chinês e péssimo. A pior bisteca que já comi. Um cozinheiro chinês que cozinhava mal!
A mesma coisa que um sueco baixinho. Eu só lhe pedia ovos cozidos e torradas.
N- Alguma coisa o impressionou muito na cidade?
SS- O papel de carta do Smithsonian. Fiz todos os meus desenhos da época nele.
Escrito por Nina Horta às 22h23
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Nova York
N- E Nova York, depois de tudo tornou-se a sua cidade, não?
SS–Ah, como adorei a cidade, foi minha maior musa. Ficava doido com seu colorido, sua vida latejante, seus prédios, seus reflexos. Isso, na hora que cheguei. Depois assisti a cidade se deteriorando e perdendo muito do seu primeiro encanto.
N – E o que achou da comida, dos restaurantes….
SS- Bom, nos Estados Unidos é diferente. Não tem nada a ver com o resto do mundo. Ainda são bárbaros em matéria de comida, imagine! Restaurante não é lugar de comer e sim de se divertir. Comida gordurosa, comida frita e as crianças gostam. E se as crianças gostam o americano adulto também gosta. Eles conservaram o paladar infantil. E as crianças americanas só comem cachorro quente, hambúrguer e macarrão com almôndegas, tudo bem mole e encharcado de molho ketchup e mostarda ruim.
N- Por que será que se formou este gosto num país cheio de bons ingredientes frescos?
SS – Bom, são forçados a comer desde pequenos pela mãe. Depois pela escola que tem merenda grátis. E podem comprar também na cantina doces horríveis, pizzas, hambúrgueres e sorvetes. Fora da escola comem também e bebem em latinhas com três canudos jogando tudo na calçada quando acabam de comer. Caixa, lata, enfim,como vacas que deixam cair a bosta no pasto.
N – O senhor implicou mesmo com os modos americanos de comer. Deve ser um reflexo de sua infância mais pobre, reprimida, educada, obediente. Onde só se dizia não, para as crianças.
SS- Pode ser, mas vivi na Itália e a preocupação com a comida era bem diferente. Sabiam apreciar o que era bom, os restaurantes tinham comida simples,mas muito boa.
N- Não se lembra de nada gostoso ?
SS – A única refeição boa é o café da manhã. Quando viajava eu pedia o café da manhã mesmo ao meio dia ou à noite.Torradas, ovos e presunto ou bacon, muito bem preparados com guarnições deliciosas de batatas homefried com bacon e cebola ou de batatas fritas que são cobertas de ketchup. Não se encontra presunto cru, mas o cozido tem tantas variedades: presunto de Virginia, com abacaxi, presunto defumado do sul, lombo canadense, que é um meio termo entre o presunto e o bacon. E ainda as salsichas, os wafflescrocantes, marcados a ferro quente, que parecem o traseiro de alguém que ficou sentado por muito tempo.
Escrito por Nina Horta às 22h20
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Viagens e fim
N – Antes de ler sobre o senhor jamais soube que havia estado no Brasil e que sua primeira capa havia sido a de uma revista brasileira, Sombra. Bonita capa com sol de arder, a praia e um sorvete.
SS – É verdade, fui ao Brasil, e quando voltei todos queriam que eu falasse em injustiça social, em clima, em arte, como se eu fosse a revista Time, que eu falasse qualquer besteira destas que lemos e pensamos que é a realidade. Imaginem, num dos dias que passei lá, numa praia vi uma galinha que se havia raspado numa cerca recém pintada, e o que vi de mais essencial e bonito no Brasil foi essa galinha verde.
N– Mudando de água para o vinho, ou para o LSD, nos anos 60. Todos descobriram o LSD. E o senhor foi convidado para uma experiência.
SS- Verdade, Providenciaram para mim discos de Ravel, Debussy e Chopin, lápis e papel.Preferi ficar sem música e sozinho no quarto. Não me lembro bem da experiência. Sei que havia um quati da América do Sul na sala de visitas, Quati de verdade, não foi alucinação minha. Brinquei um pouco com ele e depois fui passear pela mata, à volta da casa. Não me lembro de quase nada a não ser que entendi perfeitamente o que eram as árvores. Nunca havia pensado nelas antes. Dois meses depois já começaram a aparecer árvores na capa da New Yorker. Árvores steinberguianas,imagine!
N – Agora, para finalizar, vou fazer como a Marilia Gabriela e pedir que o senhor nos deixe com alguma frase ou poema, ou citação.
SS – Uma receita rápida? Do Aldo. Ferva uma tigela de água por pessoa, ou um pouco mais. Jogue dentro uma alcachofra por pessoa, sem as folhas externas mais duras, sem o feno, e cortada em 8 pedaços cada uma. Deixe cozinhar com sal e sirva com um pouco de pimenta-do-reino e azeite de oliva virgem.
N- O difícil é cortar uma alcachofra em 8 pedaços… E será que o caldo não fica amargo?
(A exclamação repetida “imagine” é um cacoete do desenhista e as respostas são colagens verdadeiras ).
Saul Steinberg (1914-1999)
Do facebook do Luiz Horta
http://caracterescomespaco.wordpress.com/2011/05/27/steinberg-o-genio/