O BAÚ DO PEDRO NAVA
26/02/12 23:11Quando li que a minha Companhia das Letras estava dona do meu Pedro Nava, senti até um frio na barriga. Nada mais certo e adequado. Bons editores com bons autores.
Não tenho a mínima perspectiva para falar sobre Pedro Nava. A não ser que ele mora na minha cabeceira junto com Proust.
Fui criada em São Paulo, mas a família de todos os lados era mineira. Minha mãe foi contemporânea do Pedro Nava e colega de classe e melhor amiga de sua irmã, na Escola Normal. Meu tio Arthur, médico, foi colega dele na Escola de Medicina.
Lembro de uma historinha que o tio contava. Foi consultá-lo, os dois já mais velhos, e o Pedro Nava empunhou aquele fio de prumo em frente ao tio ( não sei como se chama)… “Arthur, você está torto, seu lado direito, mais baixo que o esquerdo”. O tio, também médico observava do outro lado. “ E você torto do esquerdo, mais baixo que o direito”.
Só conhecia o Nava que minha mãe chamava por um apelido que ele não menciona nos livros dele. Sabia do Nava como mineiro morando no Rio e bom médico.
Quando seu primeiro livro saiu não acreditei. Era a fala da minha mãe e do meu pai, o passado tantas vezes repetidos por eles, os lugares, os personagens, os quintais, tudo que latejava em mim, ele botou para fora em torrentes de palavras, catadupas, cachoeiras que além daquelas que eu conhecia se enchiam de anglicismos, de francesismos. As mesmas leituras dos meus avós e meus pais e meus tios, as mesmas histórias.
Foi amigo de outros Guimaraens, apreciava Alphonsus e os filhos, descrevia tudo e todos com uma fidelidade total, e o que leio sobre ele, quase sempre, sempre é o modo pelo qual fantasiou sua auto biografia. No entanto, as suas descrições da Rua da Bahia, onde morava minha mãe, o bar do Ponto, da casa de minha tia avó são perfeitas.Terá inventado outras coisas, mas não era muito bom de inventar, não, sente-se o memorialista nele, o negócio é que escreve bem demais fica cm cara de inventado. Acho que nem é inventado, é inventoriado. Essa lembrança, por exemplo, é impressionantemente justa. E muitas outras, como se levasse na cabeça o mapa de Belo – Horizonte.
E que memória! Imagino um menino pequeno catando fotos e objetos antigos, formando a história de uma época.
Acho que já comprei os livros umas três vezes. Logo que saíram e eu lia tanto que desbeiçaram. Comprei no Rio de Janeiro, outra vez, vi numa livraria no centro da cidade e não resisti. Vocês já fizeram isso? Comprar o mesmo livro mais de uma vez simplesmente porque gostam dele? Depois comprei aquela edição feita pelo sobrinho e me zanguei, até eu conseguia corrigir os erros. Agora estou precisando muito de outra, novinha em folha, para começar a ler de novo, como se fosse a primeira vez. O diabo do escritor resgatou meu passado e escrevendo muito bem.
Uma vez tentei pegar um assunto dele qualquer, não me lembro mais qual, e escrever a la façon de Pedro Nava. Que decepção! A linguagem dele é forte, viva, a minha crônica ficou um tatibitate de criança.
Nem só de amores foi minha vida com ele. Quando se suicidou, deixando um livro incompleto, e pelo motivo ridículo que alegavam, fiquei indignada. Não era coisa que se fizesse. Nós leitores brasileiros, não merecíamos um desaforo desses. Fiquei uns oito anos sem lê-lo, de pirraça. Mas, como não ressuscitou nem nada, voltei humildemente. Que mineirice capaz, que erudição, que cultura, que humanidade, que letras tão boas, que palavras tão justas.
Minha família, que é claro não é mais tão mineira, não gostou do que chamaram de lista telefônica, ou melhor, sua mania de árvores genealógicas. Azar deles. Pois os quatrocentões não falam só sobre Cotinha, Mariinha, Ornella, Gertrudes? Por que um mineiro não pode ter mania de pesquisar origens. “Suprimindo a vaidade, o que procuro na genealogia, como biologista, são minhas razões de ser animais, reflexas, instintivas, genéticas, inevitáveis”, escreveu em Baú de ossos. “Gosto de saber, na minha hora de bom ou mau, na de digno ou indigno, bravo ou covarde, veraz ou mentiroso, audaz ou fugitivo (…), saudável ou doente – quem sou eu. Quem é que está na minha mão, na minha cara, no meu coração, no meu gesto, na minha palavra…”
Nunca me importei com isso, a leitura de Pedro Nava é um correr de palavras entrançadas com tanta beleza que dá para ler até nomes enfiados atrás de nomes, vão ter um ritmo e cadência só dele.
Nesse mesmo jornal, na Folha, Um colunista muito bom, falou sobre suas passagens antológicas com desprezo, não entendi direito, não disse que sou cega quanto a Pedro Nava?
Memórias… de Pedro Nava14/10/2011
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Roubei do meu próprio blog
Toda vez que alguém me pergunta qual o melhor livro de cozinha que já li fico meio apertada. O que é um livro de cozinha? Um manual de culinária com boas receitas? Alguém que fale tão bem de comida que me ponha em frente ao fogão? Um autor que inspire, penso eu. E imediatamente vem à minha cabeça o Pedro Nava, nosso maior memorialista. Vou tentar colocar aqui, aos poucos, as melhores páginas dele sobre o assunto. Todas as páginas dele são boas, mas podemos nos concentrar na comida.
Balão Cativo Memórias – 2
Aqui descreve os fundos da casa da avó em Juiz de Fora.
“Logo se ouvia o marulhar de uma corrente de água, rente a essa parede divisória (como fosso que a defendesse). O rego fundo era todo verde escuro dos inhames que nele nasciam. O riacho vinha dos lados da rua de Santo Antônio . Descia, sussurrava e se perdia debaixo de nossa coberta, na galeria subterrânea que recebia os canos das latrinas e dava no Paraibuna. Logo à direita eram as touceiras de banana, seguidas pelas laranjeiras – ora carregadas de flores de biscuit, ora vergando ao peso dos pomos de ouro ou de esmeralda. Vinham as goiabeiras com seus frutos brancos (como que forrados de veludo e cetim de cor creme) ou vermelhos (de polpa quente e corada como o dentro dos beiços, o embaixo da língua e o fundo das bochechas). O caminho infletia para a esquerda onde ia dar numa espécie de poço de lavar café, onde as negrinhas tomavam banho.Cedo aprendemos a espiá-las escondidos no meio das pitangueiras, dos pés de araçá, gabiroba, cabeluda e das romãs de dentes sangrentos. Para cima caminhava-se no meio de mais fruteiras. De mamoeiros, limeiras, pés de toranja, bergamota e tangerina, de laranja da terra e da incomível laranja-vinagreira (entretanto insubstituível para arear os tachos de cobre – com seu caldo corrosivo, com cinza, saibro e sal grosso).Além ficava uma espécie de palhabote de madeira, cheio, atulhado até as telhas de mobílias de jacarandá quebradas e fora de uso. Halfeld. Aos poucos a Rosa ia virando tudo em lenha. Assim se queimou uma fortuna e arderam peças de museu. Mais longe uma cacimba forrada de pedra, por dentro e por tijolos, por fora.Sobre estes, o musgo mais macio que já senti. Vinha daí a água pura que se bebia na casa – límpida como cristal, fria como gelo. Entre esse poço, a coberta dos móveis velhos e o muro dos Pinto de Moura – o campo de goles das amoreiras. Em seguida a área do croquet e dele é que pulávamos para predar as carambolas do Seu Miano. Exatamente no meio da chácara ficava árvore de altura prodigiosa. Era um jatobá dos santos dias de outrora. Dele caiam as favas enormes e cheias de polpa pulverulenta, esverdeada e engasgativa que desprendia aquele cheiro que depois se saberia que era o vero cheiro de boceta. Havia outra fruta, também de cheiro indecente e além do mais, de aparência vulvar: o mole jenipapo. O canavial. À sombra do jatobá, a mesa e as cadeiras rústicas, feitas com galhos de árvore, onde se saboreava a garapa espremida na hora, na engenhoca movida pelas negrinhas. Até a rua de Santo Antonio, mais frutas, outras frutas, todas as frutas. Os abios. Os jambos. Os sapotis (onde estão os frutos d´antanho?). Os pêssegos de abrir , do mato, da índia. As mangas-espada, carlota, sapatinho e rosa. Jaca mole e jaca dura. Os abacates. As uvaias. O coco-de-catarro, o jalão. Tudo quanto é pinha, fruta-de-conde e biribá.O araticum cagão que não se comia, já se sabe, era aquela água… A Inhá Luiza gostava de reunir suas amigas mais íntimas na chácara, com a família. Geralmente recebia perto da engenhoca, para o caldo de cana. Em tempo de jabuticaba sob as jabuticabeiras, para as barrigadas tomadas no pé.
Ah, eram faladas, arquifaladas as jabuticabas do 179. ……………………………………………………………………………
Entre estas mereciam lugar à parte às de Inhá Luiza. Eram hors concours, eram gigantescas. Tinham tratamento o ano inteiro. Poda especial. Galho seco catado. Adubo de todo o restolho da cozinha que ia para o redor de suas raízes, de mistura com estrume. As folhas e jaboticabas que caíam, as cascas e caroços das que eram chupadas durante as barrigadas eram varridas para junto do tronco, ali fermentavam, destilavam o resíduo que entrava de terra adentro com a água das chuvas. Esses tratos faziam das árvores de Inhá Luiza verdadeiros fenômenos da terra de promissão. Quando era tempo, as frutas negras e lustrosas se comprimiam desde rente ao chão. Tronco e galhos ficavam parecendo cabeças cheias de cachos noturnos, como os da prima Crisólita, como os de minha tia Risoleta, como os de São Felipe Apóstolo no plano inferior da Tranfiguração………………………………………………………………………………………………………………..
Eram vinte e quatro pés, plantados aos pares, uma ala no meio e o encontro ogival de seus galhos fazia uma abóbada toda verde e rendada por entre cujos nervos e arquitraves o sol mal entrava. Minha avó, como quem distribui prebendas, dava um pé a cada favorito seu – para bel prazer e usufruto. …………………………………….
Os outros eram todos dela. A ala começava com dois pares de jabuticabas-brancas que davam frutos tão graúdos como limões, cascas grossas mosqueadas de negro e verde como num vitiligo, duras e estalando ao dente, de caldo mais espesso que gosma animal. Depois vinham os vintes pés de preta comum com suas bolas – por fora de ônix, por dentro de pérola liquefeita e doce. Quando os pés estavam cheios, negros e carregados, minha avó trazia levas de convidados para as famosas barrigadas.. Comiam de entupir. Todos traziam cestas que levavam cheias e cobertas das folhas, verdes que protegiam do calor as frutas alteráveis e delicadas. Vinham os parentes. Os aderentes, os amigos. Os amigos dos amigos e as jabuticabeiras permaneciam forradas, coberttas de jabuticabas, daquela frutificação, daquela coma negra enrolada – como se não tivessem sido tocadas. Sobravam, acabavam caindo no chão e as negrinhas empurravam tudo para apodrecer junto ao tronco, para impregnar a terra, tornar a descer e voltar a subir no outro ano como calda incorruptível, como seiva nutriz, circulante e perene.
Às vezes passo por teu blog, leio tua coluna e sempre alguma coisa me dizia: ela é mineira! Será o que?
que lindo, nina. mais uma vez você me comove ao falar de livros. obrigada.
Ôi, Nina, sou mineira mas não conheci ninguém próximo do Nava – apenas li seus livros e acompanho tudo que escrevem sobre ele. Tenho lembrança dele na TV em lançamento de livro ou uma homenagem, sei lá, em que ele disse, olhando para a câmera: livro de memória é como um carro com os faróis ligados para trás. Sei disto e por isto gosto dele!
pena, nina, gostava de lê-la, mas, abro seu blog na esperança de ler uma matéria sobre alimentação viva, mas só a vejo nos saudosismos de outrora..enquanto isso, me parece q o povo – rico ou pobre – chic ou brega – está ou de sobrepeso ou obeso. lástima….nao leio mais, pq quero só ver algum bom gourmet escrevendo – depois de conhecer, claro, o crudivorismo. pra tirar os antidepressivos da vida de minhas amigas, pra baixar a pressao arterial sem remédios, pra ser uma avó mais saudável, o que tu achas….é tão simples, tão estupidamente fácil, q parece mesmo é medo de provar um simples suco verde. ou um trigo germinado…tststs…nao sentes falta de comentários sobre seus posts? isso nao é um sinal de quem sabe, mudar um pouquinho paradigmas?