India
16/02/12 17:03Curry, canela e realidade
Nos álbuns de fotografias de um inglês contemporâneo, há sempre fotos de antepassados na Índia, mulheres e homens na varanda de um bangalô. Ela veste uma saia longa, corpete, botinhas de amarrar, blusa de mangas compridas e jabô de renda. Nos ombros, um xale, e, nas mãos, às vezes nada, às vezes um bordado. O olhar é vago, além do horizonte, a pose é rígida, ereta. A pose e a roupa negam o calor, negam a Índia.
“Human kind cannot bear much reality”, disse Eliot. “O gênero humano não suporta realidade em demasia.” Era isso. Até as casas se fechavam, se encolhiam dentro de gramados, se afastavam dos vizinhos, empurravam para fora o país caleidoscópico. Memsahibs, mulheres de classe média, pouco seguras, sem outro projeto que acompanharem os maridos, estes, sim, imbuídos até a alma de sua suposta missão civilizadora.
A maioria delas não queria aprender nem apreender a Índia. O que fazer depois com os deuses cheios de braços, com a arte tão dourada, os costumes, aquele cheiro de goiaba madura e manga amarela? E o alho frito, o cravo, a canela, o enjoativo óleo de jasmim, o estrume de vaca queimado em fogueira a permear o mundo, a lenha, as brasas. Oh, my Gawd, sem contar os elefantes e camelos, os pagodes, escorpiões, lagartos, morcegos, cobras, febres malsãs, sezões.
O sonho seria morar debaixo de um mosquiteiro com ventilador de teto que afastasse os bichos e atenuasse as cores solares e noturnas, que esfumaçasse as contradições, o excesso de sensualidade e o ascetismo, a espiritualidade e o pragmatismo.
A memsahib e o patrão, seu marido, tinham por obrigação conservar distância dos nativos e governar -mais uma técnica de poder do que qualquer outra coisa. Eram pessoas comuns, de pés de barro, havia que se fabricar certo mistério para fortificar o mando. Todo artifício servia. Igrejas góticas, colunas de mármore, estradas de ferro com torres, a pompa e o luxo representando a superioridade, as convenções, os preconceitos. Era o triunfo da razão sobre a barbárie, a elegância do clássico contra o descontrole dos excessos e do grotesco.
A inglesa, então, punha as chaves na cintura, apesar das dezenas de empregados que desabotoavam sua roupa, trançavam seu cabelo, ensaboavam suas costas. A mais exilada das mulheres tentava plantar a Inglaterra em solo seco, mas de chuvas fartas. Construía a bolha onde poderiam reinar o chintz, as violetas e gerânios e o verde calmo de uma pélouse. Governava cozinheiros que cheiravam demais a curry e asafetida. Mandava matar o cupim e a formiga branca, pisava com o tacão nas cobras, espetava as borboletas em alfinetes, prendia a paisagem em leves aquarelas.
A cozinha era um cubículo escuro com bacia de pedra e fogão a lenha. O trabalho diário da memsahib, agarrada a manuais escritos especialmente para elas por inglesas conservadoras, era ver se o leite estava fervido e a água filtrada e se as frutas e verduras haviam sido passadas por uma solução de permanganato de potássio.
As mesas da sala de jantar (jantava-se a rigor) eram cobertas de linho branco, enfeitadas com guirlandas de hera. No centro, um épergne de prata com rosas, e salvas espalhadas cheias de chocolates, pralines e frutas cristalizadas.
Sob as mesas, enfaixavam as pernas por causa dos mosquitos e nas noites mais quentes enchiam bacias de gelo para os pés e acendiam candeeiros para atrair os insetos para mais longe.
Não podiam escapar de todo dos curries, aos quais se afeiçoaram, às galinhas recheadas com damascos persas, aos chutneys de coentro, ao coco, aos cajus e abacaxis, lassis de manga, refrescantes coalhadas geladas, com frutas e especiarias, do arroz de cardamomo e pinhãozinho, da sopa de camarões e canela.
Mas faziam toda a força possível em contrário. Aqui temos um típico menu de 1882: “Sopa de amêndoas ou caldo de carne; peixe cozido; croquetes de timo; maionese de lagosta (de lata); almôndegas com tomate; quenelles de perdiz; peru cozido; pernil de carneiro; rins à alemã; Sobremesa: geléia de marrasquino, creme brûlé, merengues, queijo fresco, stilton; sorvete de limão; sorvete de café; frutas da estação, bolos e biscoitos”.
Os cozinheiros se adaptavam ao básico da cozinha das memsahibs, lidavam com o sagu, a semolina, o melado, a gelatina e a farinha de trigo, mas tinham lá suas pequenas vinganças. Coloriam o purê de batata de vermelho e verde e moldavam pêras com um cravo na extremidade. Serviam a salada de frutas dentro de fios de caramelo e mandavam o sorvete para a mesa em formato de castelo, assim como esculpiam Shiva em gelo. Punham muito “vark” de ouro e prata sobre a comida. A inglesa imperialista tinha que engolir. E gostava.
Para saber mais sobre comida indiana: “Curries and Bugles, a Cookbook of the British Raj”, Jennifer Brennan (Penguin Books); “Plain Tales from the Raj”, Charles Allen (Abacus); “Stones of Empire”, Jan Morris (Penguin Books); “Women of the Raj”, Margaret MacMillan (T&H); “Arqueologia Culinária da Índia”, Fernanda de Camargo-Moro (ed. Record).
nina querida, que bom que vc voltou!
beijos
Nina, você como sempre exerce magia, exala criatividade.
de f’érias, em sc, calor mas com uma brisa maravilhosa (nordestina? – que os sulistas nao se ofendam). vendo o blog com esse texto. transporta, com imagem mesmo, para as diferencas fantasticas da india.
ai que espetáculo de texto. e é assim até hoje, de mil modos. imagina que veio um namorado norte americano me conhecer. parecia, nos 5 meses de conversa pelo skype, um cara encantador. tinha morado na europa, não era tão tio sam assim. enfim. o homem trouxe um livrinho. trouxe freud em alemão também q ele lia toda manhã. e trouxe um livrinho que ensinava aos norte americanos o basico sobre o brasil. e andava com o livrinho. e quando me fazia uma pergunta qualquer, eu respondia… lá ia ele, disfarçadamente, conferir no livrinho. ódio que me dava. desculpa o post longo. viajei.